Ícones da Comunidade
No ano da Esperança vamos abordar alguns ícones da nossa comunidade. Pessoas que todos já viram ou ouviram falar, mas que no fundo pouco conhecemos.
Por isso, queremos falar um pouquinho de suas experiências. Essas pessoas são como obras de arte: valorosas, bonitas, com uma bela mensagem a passar. Vale a pena conferir.
“Devemos ser os primeiros a ter em nós a esperança, ser dela um sinal visível, claro e luminoso para todos.
O Senhor ressuscitado é a esperança que não desilude” (cfr. Rom 5,5).
Papa Francisco – Audiência Geral, 10/04/2013.
Meu nome é Jose Carlos Pinheiro Soares , nasci em Campos e, aos 16 anos perdi meus pais. Aos 18 anos, em 1964, fui colocado num trem e enviado ao Rio de Janeiro para servir o Exército.
Depois de três anos e dois meses no quartel, sem conhecer ninguém aqui na cidade, fui trabalhar em obras e, também, descarregando caminhão na feira, na Penha, onde morava.
Acredito que esse trabalho pesado, ao longo dos anos, foi o que provocou o meu grave problema circulatório, nas pernas. Cheguei ao ponto de não poder mais trabalhar. E foi aí que eu descobri que aqueles que pareciam ser meus amigos, não eram amigos de verdade. Fui obrigado a morar na rua até o dia em que fui salvo por Deus. Eu nunca perdi a fé e a esperança no meu Deus.
Morei na Penha, embaixo do viaduto da Rua Lobo Júnior e, com as pernas cheias de feridas, dormia sobre jornais e papelão. Cheguei a ser atendido no Hospital Getúlio Vargas, mas, como o médico queria amputar minhas pernas, eu não deixei e não voltei mais lá.
Sofri muita discriminação e humilhações. Pedia comida, água e as pessoas negavam. Comia numa lata, pegava comida no lixo de um restaurante, às vezes, azeda. Tinha sempre uma garrafa com água porque sabia que sem comida eu podia ficar, mas sem água, não. Na hora da fome, eu bebia água. Mas as pessoas pensavam que era cachaça. Nunca fui de bebida e nem de droga, mas cheguei a ser convidado para trabalhar para o tráfico. Era dinheiro fácil, me diziam.
Eu gostava muito de ouvir rádio e prestava muita atenção nos locutores, na pronúncia das palavras, porque eu não estudei. Aprendi na roça e na raça alguma coisa e sempre ouvia a Rádio Nacional. Gostava de locução, de poesia, de seresta, de pagode.
Eu adorava poesia e tinha vontade de ler um livro de Carlos Drummond de Andrade, mas não tinha dinheiro para comprar. Às vezes, na solidão da noite eu escrevia versos, mas perdi tudo debaixo do viaduto.
Houve uma vez, na época das festas de Natal e Ano Novo, em que chovia e eu fui parar debaixo da marquise de um prédio. Ouvia o som das pessoas festejando em seus apartamentos. Pedi ao porteiro que trouxesse um pouco de comida porque estava com muita fome, e ele me disse que não poderia incomodar porque estavam todos bêbados lá em cima. Depois das festas peguei as sobras que colocaram na frente do prédio, para o lixo. Não tenho vergonha de dizer. E eu chorei no Natal.
Durante os seis anos que fiquei na rua, ouvi muitas coisas tristes de pessoas que passavam. Diziam, “tanta gente boa morre e esse mendigo está aí”. Chorei quando uma senhora passou e falou: “esses mendigos deviam ser todos mortos. Não sei como é que deixam eles aqui! Tinham mais é que matar essas pestes!” Não desejo para ninguém o que passei e não guardo mágoa de ninguém.
Nem todo mundo que está nas ruas está lá por causa de bebida e droga. As pessoas que estão nas ruas também têm virtudes, só que ninguém vê. A doença também leva pessoas para as ruas. Na verdade, muitas são as causas que levam as pessoas para as ruas.
Um dia, uma senhora da Igreja Bom Jesus da Penha, passou por mim e disse: “Acredita em Deus, José, que Ele vai te ajudar, vai te tirar daqui. E eu, mesmo sem poder, por causa das minhas pernas, ajoelhei e rezei, chorando: “Senhor, entrego minha vida em tuas mãos.” E Deus me atendeu.
Um dia passou por mim a Sra. Soledade, da Paróquia Jesus Ressuscitado do Largo do Bicão e eu pedi: “Por favor, me ajude, eu não quero morrer aqui!” Ela, então, falou com o Padre José, com os Vicentinos e eles foram lá me ver. Eles conheciam a Casa de Betânia e falaram com a Irmã Elci e ela, sem me conhecer, sem nunca ter me visto, sem saber quem eu era, disse: “Tragam ele aqui que nós iremos tratar dele”
E, graças a Deus, cheguei a Betânia em outubro de 2002, depois de viver seis anos na rua. Em Betânia aprendi muita coisa e principalmente, aprendi a rezar. Fiz Oficina de Oração e Curso da Palavra. Sou do Apostolado da Oração e da Liturgia da Missa das 10:30h, na qual sou leitor. Também sou o Papai Noel oficial da Casa de Betânia.
Sou muito grato a Deus por tudo e também às pessoas da Paróquia de Jesus Ressuscitado que me ajudaram; aos Vicentinos e também à Paróquia de Nossa Senhora de Loreto e à Irmã Elci. E peço a Deus que abra para os meus irmãos a mesma porta que abriu para mim. E escrevi um verso: “Gratidão seria pouco, e pouco tenho a lhe oferecer. Eu lamento por ter pouco mas sou muito grato a você.”
Tenho o maior orgulho de trabalhar aqui, pela Casa de Betânia, na porta da Igreja, há treze anos, faça sol ou chuva.
Agora tenho o meu cantinho. Moro sozinho, de aluguel, no Rio das Pedras. Tenho amigos que me ajudam, me dão cesta básica, cozinham para mim. Hoje em dia sou chamado a dar testemunho da minha história. Não sou ator, nem poeta, mas gosto de locução. Sempre admirei os locutores de rádio e televisão e procurei imitá-los. E não falo tão mal assim.
Carrego em meu coração o Salmo 91: “Aquele que habita no abrigo do Altíssimo e descansa à sombra do Todo-poderoso pode dizer ao Senhor: Tu és o meu refúgio e a minha fortaleza, o meu Deus, em quem confio.”
Muito obrigado! Peço a Deus que abençoe a todos!
Colaboraram: Ana Lucia e David